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Tratamento com sentido
A visita frustrada
A equipe do Tratamento Com Sentido foi ao Hospital Psiquiátrico São Pedro entender as condições de vida dos pacientes e o resultado foi aprisionante
Rafael Bento
01 de novembro de 2022
Rafael foi o primeiro a chegar. Ele passa de carro pela guarita e estaciona em uma das vagas logo ao lado da entrada. Fica ali com as bolsas de equipamentos por volta de 15 minutos. Durante esse tempo, coisas lhe chamam a atenção.
Diferente dele, todos os carros que entram param na guarita. Um motorista desce do carro com um segurança. Ele abre o porta-malas. Com a autorização do profissional, volta para o veículo e continua seu caminho. Isso poderia parecer até amedrontador, mas com um dia tão ensolarado quanto aquele e uma avenida movimentada em suas costas, Rafael se impressiona com a paz do local. Um gramado verde gigante e vazio, somente com uma goleira de futebol. Logo atrás, um prédio com arquitetura clássica, mas tão surrado que só de olhar dá para sentir o cheiro de mofo. Esse é o Hospital Psiquiátrico São Pedro.
A segunda a chegar é Paula e, instantes depois, Andréia. Esse grupo estava se reunindo com objetivo de registrar cenas do dia a dia da instituição, como a oficina de criatividade que os pacientes e residentes do hospital experienciam.
Chegando mais perto do velho prédio, o grupo nota que uma escadaria sedia uma apresentação teatral. Enquanto uns observam a peça, outros iniciam uma conversa com a responsável que iria apresentar o hospital, Jade.
Jade informa que diferente do que havia sido combinado com a Secretaria de Saúde, eles não poderiam acompanhar as atividades dos residentes e nem gravá-los, pois naquele momento nenhuma oficina estava sendo realizada e que não poderiam entrar nos locais onde os pacientes vivem. Porém, Jade ainda estava disposta a mostrar o local onde as práticas são feitas. Neste momento, Felipe e Luiza também se juntam à equipe.
Liderado pela profissional, o grupo começa o passeio. A primeira parada é na farmácia. A construção parecia tão acabada quanto a clássica fachada do hospital. Os jovens até se questionam o quão higiênico é guardar medicamentos naquele local. Mesmo sem ter autorização para ver o interior, a visão superficial da sujeira do ambiente é evidente.
Enquanto ouvem Jade, uma pequena cena os faz lembrar do local distinto em que estão. Uma senhora, aparentemente de 60 anos, caminha apoiada em um homem alto, vestindo jaleco. Ela se aproxima do grupo, fazendo com que eles consigam ouvir suas palavras. A senhora afirma de forma comedida, mas com muita aflição, que cairia ao chegar ao fim da calçada em que estavam. Ela repete isso diversas vezes. O homem em nenhum momento para com o objetivo de auxiliá-la. De maneira apática, ele continua andando até chegar ao meio fio, mas ela não cai. Segue seu caminho. Agora, em silêncio.
O grupo se dirige ao prédio usado como moradia para os poucos residentes que ainda vivem lá. Uma outra senhora, Clarice, se aproxima. Ela se apresenta rapidamente aos jovens, informando que mora ali sozinha há algum tempo.
Em menos de um minuto de conversa, Clarice convida o grupo a entrar no prédio e ver seu ateliê de pinturas. Todos ficam animados pelo convite e olham para Jade buscando aprovação. Meio perdida, ela autoriza, mas pede que não gravem nada além de áudio e do ateliê.
Clarice tira uma chave do bolso para destrancar a porta. Uma imagem até não intuitiva. Uma pessoa, tão dependente de um tratamento, dizem, mas com tanta responsabilidade da sua casa. Todos entram.
O grupo fica lá dentro por volta de meia hora. Clarice mostra a grande sala cheia de pinturas sobre mesas. A grande maioria, senão todas, de flores. Os jovens aproveitam para gravar uma entrevista em áudio e imagens dos quadros. Clarice conta com orgulho sobre as pessoas que a visitam para ver o trabalho e até mesmo comprá-los.
Diferente do que imaginam, ela é incisiva em dizer que não quer sair de lá de jeito nenhum. Ela fala com amor sobre tantos que já passaram por ali e tiveram que se mudar por conta do processo de desinstitucionalização por que passa o São Pedro. Ela lembra que, mesmo que saísse de lá, não teria ninguém para ajudá-la. Porém, afirma que lá dentro tem amigos e família, até mesmo um filho de “consideração”.
Muito nervosa, Jade entra na sala e pede que todas as gravações sejam interrompidas e tudo que estava salvo seja deletado imediatamente.
Os jovens atendem o pedido e guardam os equipamentos. Eles informam à residente que eles têm que se retirar, para continuar o passeio pelo hospital. Enquanto se despede, Clarice convida o grupo para uma nova visita no futuro, com direito até um lanche especial.
Enquanto os jovens ouviam Clarice, Jade estava ao telefone com a direção do hospital. Ela soube que o comitê de ética do São Pedro havia se reunido emergencialmente para debater a presença dos jovens. Nele foi decidido que nada poderia ser gravado além da sala da oficina, nem mesmo os áudios, e deveriam entrar com um pedido para a direção do hospital analisar. O grupo fica surpreso com a decisão, pois tudo havia sido acertado previamente com a Secretaria de Saúde do Estado, teoricamente um grau acima do comitê.
Uma outra profissional do hospital se aproxima da conversa. É a já conhecida pelo grupo, Sofia. Ela que havia ajudado no contato para a realização da visita. Todos vão então em direção a famosa oficina de criatividade.
Um lugar lindo. Tanta arte, política e sentimento em um lugar só. As paredes são cheias de quadros, gravuras, fotos. Tudo cheio e meio bagunçado. A cada lado que se olha, mais mil detalhes para se analisar. Poemas complexos em defesa dos direitos humanos. Gritos representados por palavras ou desenhos nas paredes. Eram várias salas com tipos de artes diferentes para os pacientes se expressarem como se sentissem confortáveis. Uma explosão de beleza. Uma beleza vazia.
Parte do grupo escuta Jade explicar as diferentes áreas do local e sua história, todos os aprendizados com os anos de oficina. Ela fala da dedicação dos profissionais e pacientes para aquele lugar existir e funcionar.
Os outros conversam com Sofia. Ela conta que foi chamada para ver o que o grupo estava fazendo. Acompanhar se não estavam filmando sem permissão, ou entrando onde não deviam.
O grupo conhecia Sofia, ela estava ali por obrigação. Se dependesse dela, tudo seria mostrado e divulgado. A profissional conta que a direção e o comitê de ética buscavam problematizar a presença dos jovens para que tudo fosse proibido. Todos sabem da guerra política que aquele lugar representa. A desinstitucionalização não afeta somente os pacientes, há profissionais com décadas de trabalho no São Pedro. Mudar a mentalidade de um tipo de tratamento que tranca pessoas para outro que liberta não é fácil. Haverá resistência. Dos dois lados.
Por fim, os jovens planejam as formas para realizar a visita novamente. Já pensam em todos argumentos e questionamentos que irão apresentar ao comitê de ética. O trabalho não ia ser em vão. Independente da resposta, eles sabiam que iriam mostrar de alguma forma o que viram naquele lugar, mesmo que sem imagens.