top of page

O que é a luta antimanicomial e a trajetória do movimento social

Entenda o contexto histórico da reforma psiquiátrica e o efeito do movimento nas políticas em saúde mental

Paula Neiman

22 de setembro de 2022

Você sabe o que é a luta antimanicomial? Para entender o movimento, vamos revisitar a trajetória das práticas de saúde no Brasil e como tratamentos focados em saúde mental foram se moldando até possuir o seu recorte atual.

 

É importante entender que a reforma sanitária foi o primeiro e principal movimento que trouxe a ideia de universalização da saúde. Esse movimento democrático reuniu diversos profissionais e estudantes da área, com a ideia de transformar a saúde no Brasil. A reforma permitiu com que fossem elaboradas novas políticas públicas, que proporcionaram grandes mudanças no sistema brasileiro.  A partir desse movimento, surgiu o Sistema Único de Saúde (SUS) e políticas focadas em saúde mental. 

A reforma sanitária

 

O movimento da Reforma Sanitária nasceu no início da década de 1970. A expressão foi usada para se referir ao conjunto de ideias que se tinha em relação às mudanças e transformações necessárias na área da saúde. Essas mudanças não envolviam apenas o sistema, mas todo o setor saúde, em busca da melhoria das condições de vida da população.

Grupos de médicos e outros profissionais preocupados com a saúde pública desenvolveram teses e integraram discussões políticas. Este processo teve como marco institucional a 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986. Entre os políticos que se dedicaram a esta luta está o sanitarista Sérgio Arouca.

As propostas da Reforma Sanitária resultaram, finalmente, na universalidade do direito à saúde, oficializado com a Constituição Federal de 1988 e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Esse novo sistema de tratamento é reconhecido, difundido e propagado até hoje. 

Durante todo o processo de modificação da abordagem da saúde, várias correntes se juntam como protagonistas, principalmente os médicos residentes, que na época trabalhavam sem carteira assinada e com uma carga horária excessiva; as primeiras greves realizadas depois de 1968; e os sindicatos médicos, que também estavam em fase de transformação. Esse movimento entra também nos conselhos regionais, no Conselho Nacional de Medicina e na Associação Médica Brasileira – as entidades médicas começam a ser renovadas. A criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em 1976, também é importante na luta pela reforma sanitária. A entidade surge com o propósito de lutar pela democracia, de ser um espaço de divulgação do movimento sanitário, e reúne pessoas que já pensavam a favor de uma saúde coletiva. 

O Brasil vivia a ditadura militar e o processo foi acontecendo apesar de circunstâncias adversas. Quando a ditadura chegou ao seu esgotamento, o movimento já tinha propostas consolidadas. Assim, conseguiu-se  articular um grande marco sanitário no país: o documento Saúde e Democracia, enviado para aprovação do Legislativo. Uma das propostas importantes era transferir o Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (Inamps) para o Ministério da Saúde.

O movimento fez algo inédito. Convidou a sociedade para participar de uma das conferências de saúde, para discutir sobre o tema. A 8ª Conferência Nacional de Saúde reuniu pela primeira vez mais de quatro mil pessoas, das quais 50% eram usuários da saúde. A partir da conferência, surgiu o movimento pela emenda popular. Essa foi a primeira emenda constitucional que nasceu do movimento social e foi considerada o maior sucesso da reforma sanitária. As propostas da reforma sanitária trouxeram a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) através da lei 8080 de 1990, visando a universalização da saúde para todos os brasileiros. 

O início da luta antimanicomial

Franco Basaglia foi pioneiro na reforma psiquiátrica e na implementação de novas formas de tratamentos em saúde mental no mundo.  Psiquiatra de origem italiana, Basaglia reformulou o modelo de tratamento aplicado em instituições psiquiátricas. 

Durante os anos sessenta, ele dirigiu o Hospital Psiquiátrico de Gorizia e ali testemunhou uma série de abusos e negligências no tratamento dos enfermos. Por esse motivo, promoveu junto a um corpo de psiquiatras, mudanças práticas e teóricas no tratamento de seus pacientes. Isso ficou conhecido como Psiquiatria Democrática, ou o movimento de “negação à psiquiatria”, que deu origem à luta antimanicomial.

Basaglia concluiu que a psiquiatria não era suficiente para tratar o paciente e que o isolamento e a internação em manicômios poderiam até mesmo agravar a condição dos pacientes. Portanto, seria necessário remodelar a estrutura psiquiátrica tal como era conhecida. O tratamento manicomial deveria ser substituído por atendimentos terapêuticos através de centros comunitários, centros de convivências e tratamento ambulatorial.

Assim, Basaglia negou a prática da cultura médica que toma o paciente como objeto de observação destituído de direitos. Em 1968, ele publicou “A Instituição Negada”, livro no qual expôs parte de suas práticas realizadas no Hospital Psiquiátrico de Gorizia.

A Reforma Psiquiátrica no Brasil teve como primeira fonte inspiradora as ideias e práticas do psiquiatra Franco Basaglia, que revolucionou, a partir da década de 1960, as abordagens e terapias no tratamento de pessoas com transtornos mentais nas cidades italianas de Trieste e Gorizia. 

 

A reforma no Brasil

No fim da década de 70, muitos movimentos ligados à saúde denunciaram abusos cometidos em instituições psiquiátricas, além da precarização das condições de trabalho. A partir disso, surgiram movimentos de trabalhadores de saúde mental, que colocaram em evidência a necessidade de uma reforma psiquiátrica no Brasil. O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) – que contou com a participação popular, inclusive de familiares de pacientes – e o Movimento Sanitário foram dois dos maiores responsáveis por essa iniciativa.

Em 18 de Maio em 1987, foi realizado um encontro de grupos favoráveis a políticas antimanicomiais. Nesse encontro, surgiu a proposta de reformar o sistema psiquiátrico brasileiro. Pela importância e marco do encontro, a data de 18 de maio tornou-se o dia de Luta Antimanicomial.

Com o intuito de acabar com os manicômios, o projeto de reforma psiquiátrica no Brasil visava substituir, aos poucos, o tratamento fornecido até então por serviços comunitários. O paciente seria encorajado a exercer sua vida em liberdade, mantendo vínculos familiares e sociais, e não sendo isolado e nem julgado por seu diagnóstico. A partir da reforma, o Estado passa a não poder mais construir e nem mesmo contratar serviços de hospitais psiquiátricos. Em substituição às internações, os pacientes teriam acesso a atendimentos psicológicos, atividades alternativas como música, pintura, dança, jogos e tratamentos menos invasivos. A família, neste caso, tem papel fundamental na recuperação do paciente, sendo o principal responsável por ele. 

O Movimento de Luta Antimanicomial consistiu em um diálogo de conscientização com as instituições legais e com os cidadãos ao elaborar o discurso de que os portadores de transtornos mentais não representam ameaça ou risco ao círculo social. Ao contrário, este seria um grande componente para sua recuperação. Por outro lado, seria necessário uma reeducação no modo de compreender os transtornos mentais, não como um estigma, mas uma maneira de ver e estar no mundo. O respeito e a conscientização se tornam armas necessárias para reformular o modo como os pacientes eram tratados até aquele momento, dentro e fora de instituições responsáveis pelo tratamento.

Lei Paulo Delgado 

A Lei Paulo Delgado foi o mais importante projeto que instituiu a reforma psiquiátrica na década de 70. Mais de trinta anos depois, a lei foi promulgada em 2001, com o intuito de garantir os direitos de pacientes portadores de transtornos mentais a receberem atendimentos menos invasivos e priorizando o tratamento através da reinserção na família, no trabalho e na comunidade. Com a lei, os pacientes passam a ter direito a informações a respeito de sua condição e sobre os possíveis tratamentos, além de estarem protegidos contra qualquer abuso e exploração.

 

Durante a criação da lei, estava previsto o impedimento a internações compulsórias, ou seja, feitas sem o consentimento do paciente ou de terceiros (familiares e responsáveis). Porém, em 2019 foi alterada pelo Governo Federal e hoje é possível haver internações mesmo com a negação do paciente. 

 

O propósito da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial é dar voz ao paciente, visando os seus interesses e o tratamento que pode ser mais adequado para cada pessoa, trazendo tratamentos humanizados e aplicados a cada realidade. Além disso, a lei prevê que qualquer diagnóstico passe pelo paciente e toda terapia seja consentida. A grande “virada de chave” é humanizar as pessoas que vivem em sofrimento mental e colocá-las como protagonistas de suas vidas e de seus tratamentos, juntamente com o acolhimento e apoio de sua família. Ou seja, o trabalho da luta antimanicomial é a união entre o Estado, os profissionais da saúde, o paciente e sua família.

Contudo, ainda hoje, existem 36.387 leitos psiquiátricos no Brasil, sendo 25.097 do SUS em 159 hospitais e 11.290 privados. O que mostra que ainda hoje, existem diversos retrocessos por parte da população e voltas de tratamentos manicomiais por parte do governo federal.

bottom of page